O tempo em que a Betty ficou longe das novelas foi de grande amadurecimento para a estrela. Desde a sua estreia nos produtos dramatúrgicos da emissora, a atriz engravidou duas vezes e passou por dois casamentos – sendo o segundo com o diretor Daniel Filho, e encerrado de maneira muito ruidosa. Esse momento longe da TV, em que a atriz pôde dedicar-se às filmagens da produção de Cacá Diegues, além do aprofundamento do seu lado materno foram determinantes para essa pausa em sua carreira. Foi oque disse ao O Globo:
“Durante nove anos seguidos fiz 13 novelas. Precisava parar. A Alexandra cresceu em ritmo de gravações. Mas eu já estava com muitas saudades”.
Ainda ao mesmo jornal, datado de 13/01/1980, ao ser perguntada sobre um novo casamento, a atriz foi enfática: “Quando isso acontecer, terei virado a pessoa escolhida pelo avesso. Um relacionamento feliz é uma maravilha.”.
Em "Água Viva", Betty interpreta Lígia, uma mulher que, após um casamento fracassado, acaba despertando a paixão entre dois irmãos: Nelson e Miguel. Além disto, a personagem investe na luta pela ascensão social ao lado de um homem rico. Esse perfil arrivista, batalhador, forte e contestador permeia toda a obra de Gilberto Braga. Suas personagens femininas possuem características da mulher daquela década que acabava de iniciar.
Segundo uma pesquisa da McCann-Erickson publicada na Veja de setembro de 1980, o perfil da mulher brasileira da década de 80 era sobre alguém que “Deve trabalhar fora, romper um casamento e iniciar outro. Quanto à vida sexual livre para solteiras e a legalização do aborto, ela não está tão certa. E quanto ao homossexualismo* (N. do A.: Termo da época), elas são contra. Divididas entre valores novos e tradicionais, rejeita com veemência a ideia da submissão da mulher ao mesmo tempo que, na prática, deixa ao homem a maior responsabilidade pelo sustento da casa. Culpa o governo pelo aumento do custo de vida, e aponta a criminalidade como seu grande pavor.”.
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A mulher da década de 80 foi capa da Veja. Mesmo com uma certa evolução, o conservadorismo e algumas ponderações mostram que ainda havia uma resistência da população feminina. |
Esse é o perfil construído do autor para Lígia, papel de Betty, que definiu assim sua nova personagem: “É uma mulher como milhares de outras de uma geração que transformou o casamento numa profissão e vivem por isso uma carga enorme de frustração e infelicidade. Estou contente em fazê–la porque não é uma personagem radical, sempre boazinha. Tem seus momentos de mau humor e até de mau caráter. Tem suas horas fúteis e sérias, doces e agressivas. Ela é muito gente e tem muito a ver com as mulheres da minha geração.”.
E a nova geração de mulheres entrava os anos 80 desafiando os antigos costumes. O topless, adotado por uma parcela delas, virou febre nas praias por todo Brasil, e chegou a ser explorado dentro da trama de "Água Viva", sofreu com o preconceito de uma parcela das pessoas que se chocavam em ver mulheres com seios de fora.
De quebra, a Globo lançou em abril daquele mesmo ano o “TV Mulher”, um programa voltado ao público feminino que tinha como principal meta, nas palavras de uma das idealizadoras do projeto, a apresentadora e jornalista Marilia Gabriela, “(Ser) Um programa que trate a mulher com a importância que ela tem, no seu papel de responsável por toda sua estrutura que possibilita que a família funcione.” (O Globo, 7/04/1980).
Eram novos tempos. O público viu-se envolvido com as artimanhas de Ligia Prado e a sua luta para ascender socialmente. A novela cravava diariamente 80 pontos de audiência no IBOPE todas as noites, quando a abertura da novela – Que trazia imagens de jovens em pranchas de windsurfe – ao som de Menino do Rio, canção de Caetano Veloso cantado por Baby Consuelo.
Naquele folhetim, a classe rica morava à beira mar, frequentavam as boates do momento – algumas cenas foram gravadas na discoteca Hippopótamus e na casa de espetáculos Canecão – usavam as roupas da moda, o que imprimiu um clima carioca e solar. Mérito dos diretores Roberto Talma e Paulo Ubiratan, que faziam com que a a novela adentrasse os lares brasileiros, seduzidos pelo charme da novela e com os artifícios criados pelos autores para entrelaçar os destinos daqueles personagens.
“Mas o Mar é uma presença constante na novela. Há alguma ação em Angra dos Reis, muita na zona sul do Rio e outras em mar aberto, porque Nelson (Reginaldo Farias), dedicou – se sempre à pesca em alto mar.” (Gilberto Braga, Revista Manchete, março de 1980). E de quebra Betty Faria desfilava sua beleza e carisma dando à Ligia uma interpretação marcante:
“Acho a novela ótima, muito bem escrita. O Gilberto Braga faz um trabalho de um autor muito especial. Ele delineia os personagens como seres humanos: Que são fortes ou enfraquecem, sérios que perdem a cabeça, nada é rígido.”
Para a atriz, aquele era um bom momento de aproveitar sua maturidade para dar vida a uma mulher que buscava a segurança depois de viver uma experiência frustrada tanto do lado profissional, quanto no lado afetivo: “Ligia é uma personagem perdida num casamento desgastado. Ela tem uma força própria do tipo de vida que levou, mas não a realização profissional a deixa insegura. Ela quer um voo mais alto, porque conhece mais os seus desejos que os maridos que teve. E eu acredito que ela consiga vencer suas limitações.” (O Globo, 4/2/1980).
E ela venceu. “Água Viva” se tornou um sucesso popular e recuperou os altos índices de audiência para faixa das oito. Isso se configurou numa matéria da Revista Manchete (junho de 1980) que apontava que a novela era a pioneira em atingir não somente as classes C e D, mas pela primeira vez as classes A e B assumiram que acompanhavam a história de Gilberto Braga. Muitos apontavam que o personagem Nelson Fragonard havia sido baseado na figura do playboy e milionário carioca Jorge Guinle. Já a socialite Beki Klabin disse que a Stella Simpson era uma representação da sua vida. Enquanto isso o cirurgião plástico Ivo Pitanguy foi associado ao personagem Miguel Fragonard, na novela interpretado pelo ator Raul Cortez, o que foi desmentido pelo próprio Ivo: “Veja bem, nada tenho contra o Raul Cortez. Trata- se, apenas, do personagem – que nenhuma semelhança tem comigo.”
Em outro momento marcante da trama e que paralisou o Brasil foi o assassinato de Miguel Fragonard e movimentou a reta final da novela e fez todos se perguntarem: “Quem matou Miguel?” A dúvida caiu na boca do povo até a revelação do verdadeiro assassino: Kléber (José Lewgoy), que segundo o autor, a escolha deste personagem já estava resolvida desde o começo da trama.
Mesmo contando com a colaboração luxuosa de Manoel Carlos (a partir do capítulo 57), Gilberto Braga, segundo a Manchete (agosto de 1980) consumiu 293.800 palavras, 1.830 horas de trabalho, além de, segundo ele próprio, ter consumido 8 mil cigarros e uns 100 litros de café, sem contar as doses de uísque, o autor só voltou a se sentir um “homem livre” após a entrega do último capítulo, e ele revelou que além da morte de Miguel, a morte de Lucy (Tetê Medina) que morre na explosão de uma lancha o deixou muito sentido. “Fiquei muito tenso, não consegui me soltar. Depois que escrevi a cena fui a uma festa na casa do Ivo Pitanguy e não conseguia me desligar. Estava tão angustiado que resolvi voltar para casa. Aí, quando ia entrar no carro e vi a estrada da Gávea deserta, eu tremi. Custei a me recuperar da morte da Lucy.”
Ainda colhendo os louros do sucesso da história, uma versão romanceada da obra foi escrita pela autora e professora Leonor Basséres. Isso aconteceu graças ao contado dela com Gilberto Braga pelo intermédio de uma amiga em comum dos dois, Ângela Carneiro. Leonor que preferiu escrever o livro sem conhecer pessoalmente Gilberto, recebeu os primeiros capítulos da novela quando ainda estava sendo exibido na TV o capítulo 50 e durante 15 dias buscou uma forma narrativa: “Tive que inventar um método e o jornalismo me ajudou muito e usei também a cola e a tesoura.” Em entrevista ao O Globo de 30 de julho de 1980 ela comentou o seu método de trabalho para a adaptação do roteiro para a versão em livro: “Foi uma barra recriar esses personagens porque na televisão, eles são definidos apenas pelo que dizem: tem a máscara do ator, a marcação do diretor, a cenografia, a sonoplastia, o vestuário, uma riqueza explicita e espontânea. No livro a gente só tem palavras, Cortes, pausas e muito poucas bossinhas. Tanto no livro quanto na novela, os personagens são mais sobre o esteriótipo.”
Arthur da Távola em sua tradicional coluna no O Globo de 10 de agosto de 1980 fez o seguinte balanço da novela:
“Não se deve efetuar uma análise crítica de atores em função apenas dos solos, brilhantes ou dramáticos, mas também em relação a capacidade de levar adiante o cotidiano da telenovela, no qual a criação e vivência profunda de um personagem passam a ser tão importantes quanto os solos de maior intensidade. Levando em conta falta de tempo para ensaios e ritmo industrial de gravações, um esforço de sete meses assim intensos é sempre respeitável e meritório: a difícil tarefa de transformar seres de ficção em carne viva.”
Sobre o trabalho de Betty Faria na novela ele foi franco: “ Tão importante como a presença, ou os grandes solos isolados é algo nem sempre levado em conta nas criticas: a base, o dia a dia, o carregar o piano da telenovela. Cenas enormes, intensas, diárias, quilômetros de instantes no ar, tudo dentro de uma criação de personagem. Por isso é importante e de grande valor o trabalho de Betty Faria. Em vez de procurar o agrado do publico com a “heroína” clássica, ela deu a densidade da mulher em luta por ascensão social e segurança amorosa.”
Já a colunista Cidinha Campos no Jornal O Fluminense não se conteve em algumas criticas ferinas à atriz, como esta, publicada no dia 28 de fevereiro de 1980: “A Betty Faria está falando muito baixo e está com uma preocupação excessiva de sorrir o tempo todo. Pega o marido a traindo com outra e sorri. Briga com uma mulher e sorri. Encontra com um homem pela primeira vez transa com ele e sorri. Dá noticia de falecimento e sorri. Há um pouco de excesso nestes risos, o que faz com que o personagem corra o risco de perder um pouco de sua força quando tem que causar algum impacto”.
Contudo, Betty nunca deixou se abalar com as críticas. Para ela o fundamental era trabalhar, ela sabia muito bem a importância de sua profissão, dos desafios impostos de ser um artista no Brasil: “O ator no Brasil tem muita dificuldade. Continuo insegura, pobre e popular. Vivo do meu trabalho, não tenho rendas nem posso me dar o luxo de ficar doente. Por isso não me deslumbro. Sou uma atriz brasileira com todos esses problemas.” (O Globo, 2/6/1980).
Assim começou 1980 para Betty: Sucesso e reconhecimento no cinema com “Bye Bye Brasil” e na TV como a heroína de “Água Viva”. Um ano especial que culminou com a vinda do Papa João Paulo II em visita ao Brasil pela primeira vez em 30 junho de 1980, onde visitou 13 cidades. Para o bem dela e para o mal de seus detratores, aquele foi um ano abençoado para nossa musa. Amém!
Fontes de pesquisa:
Livro:
Betty Faria: Rebelde por Natureza.
T:ania Carvalho.
Imprensa Oficial, 2006.
Sites:
memoria.bn.br
acervo.oglobo.globo.com
memoriaglobo.com
Vídeos:
youtube.com (especialmente o canal Mofo TV)
dailymotion.com
Imagens:
Google Imagens
Memória Globo
memoria.bn.br
Acervo O Globo
blogrevistaamigaenovelas.blogspot.com
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