ESPECIAL BETTY FARIA: 80 ANOS EM 8 PERSONAGENS. Lazinha ("O Espigão", 1974).

 



Betty Faria 80 Anos em 8 Atos

Ato 2: “O Espigão”

        1974.

        Àquela época só havia três canais de TV no Rio de Janeiro: A Tupi, a TV Rio, além, claro, da Globo. 

  Proibido de noticiar política crítica, coube ao Fantástico – Revista Eletrônica que passou a ser veiculada em cores em Abril daquele ano – noticiar o incêndio no Edifício Joelma, o título de Fittipaldi no Campeonato de Fórmula 1 e a inauguração da Ponte Rio-Niterói. À época discutia-se a fusão ou não da Guanabara com o Estado do Rio – Algo que que só aconteceria de fato no ano seguinte. Naquele ano morreram o poeta Cassiano Ricardo, além do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho. Talvez, não fosse um ano muito poético aquele de 74, já que, em março, Geisel substituiu Médici, e a ditadura, que se dizia provisória, completava dez anos. 









O ano de 1974 foi bastante movimentado: Fantástico a cores, Incêndio do Edifício Joelma, a inauguração da ponte Rio - Niterói, posse de Geisel e as lastimáveis perdas do poeta Cassiano Ricardo e do dramatugo Oduvaldo Vianna Filho, o "Vianinha". 


    
Nesta época a regulamentação profissional dos artistas ainda não existia. Cabia a eles declarar no imposto de renda que eram “comerciários”. Milton Moraes dizia “Se a profissão não existe legalmente, o problema não é dos artistas. Nós existimos”. Reiterando o dito por Moraes, uma jovem atriz, grávida do seu segundo filho, às raias do segundo casamento e de concluir a sua primeira novela em cores, afirmou: “Tenho uma profissão e essa profissão me faz ser uma pessoa pública”.  Era Betty Faria, escalada para “O Espigão”, novela que substituiria “Os Ossos do Barão”, no horário das 22h.


    Dias Gomes cria ser esta ideia, a dos grandes prédios nas grandes cidades, “um duvidoso conceito de progresso” e afirmava, ao  conceituar a sua novela, que desejava destacar “A sufocante angústia da cidade grande e desumanizada (...). Nela eu procuro retratar, em todos os níveis, as repercussões que o progresso e o novo “Way of Life” trouxeram à civilização moderna.”. A proposta era muito arrojada para aquela época, e, mais que isso, passeava por uma linha totalmente diferente dos últimos trabalhos apresentados por Dias Gomes - que vinha de uma trama rural e de uma outra suburbana – O Bem Amado e Bandeira 2, respectivamente.  






    A história de “O Espigão” começa no réveillon de 1973, com Dora (Débora Duarte), que veio ao Rio tentar uma vida melhor. Grávida e presa num engarrafamento dentro de um túnel, é ajudada por Léo (Claudio Marzo), que é migrante, assim como ela. Neste túnel, Dora dá a luz. E é justamente neste local onde os personagens se cruzam. Entre eles,  o protagonista, Lauro Fontana (Milton Moraes), um milionário excêntrico,  que intenciona construir um luxuoso hotel de 50 andares – o Fontana Sky, chamado por ele de “Espigão” – na última área disponível no bairro de Botafogo: Um terreno de 5600 m², pleno de arvores, com um casarão, onde moram os irmãos Camará. Daí se estabelece o conflito da trama.







Frames do primeiro capítulo da novela "O Espigão", de Dias Gomes.


    O Espigão, uma das primeiras novelas a cores, ainda era uma experimentação técnica, tanto no uso das cores - uma novidade - como na composição cenográfica. Mário Monteiro foi o responsável pela cenografia da novela. A fim de imprimir modernidade que caracteriza o folhetim, o cenógrafo usou e abusou do uso de acrílicos. O elevador que Lauro Fontana utilizava para chegar ao seu dormitório, era composto, quase inteiramente por este material. Apenas em acrílicos foi gasto 40 mil cruzeiros (Numa época que o salário mínimo era de CR$376,80), além da utilização de objetos "mordenosos", como um massageador elétrico importado dos Estados Unidos, que é inclusive, citado na música de abertura da novela, além de outras quinquilharias modernas.





                                       



            O túnel que aparece nos primeiros capítulos d’O Espigão foi construído especialmente para a novela nos estúdios da Cinédia, em Jacarepaguá, e as cenas do gigantesco engarrafamento levaram cinco dias para serem gravadas.

 





            Como o conceito de rede ainda não estava completamente estabelecido, “O Espigão” estreou no dia 1° de abril no Rio, no dia 3 em São Paulo, no dia 8 em Recife, no dia 15 em BH e no dia 22 de abril em Brasília.

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            N’O Espigão, a obra abordava a sociedade do supérfluo, da classe média em busca de ascensão social e de seus pivetes. Sob este prisma, estão os “marginais”: Lazinha, Alegria e Dico.


            Numa cena, exibida no dia das mães, Lazinha e Dico (Betty Faria e Ruy Rezende, respectivamente), relembram
suas infâncias tristes e pobres. A cena mereceu uma elogiosa crítica de Artur da Távola, que disse: “Uma cena contida, sem chororô, nem melodrama. Seca, mas forte e muito bem representada por seus atores”. Neste episódio, evidencia-se que Lazinha foi alugada pela mãe a uma mendiga para pedir esmolas. Depois cursou alguns anos de escola pública até ser obrigada por ela a trabalhar. Vendia balas na porta dos cinemas ou nos automóveis, nos sinais. O pai, sempre bêbado, espancava a mãe para conseguir dinheiro, e foi morto durante uma briga entre marginais na favela da Catacumba. Com cerca de 12 anos na época, teve de trabalhar em um bar próximo do Beco da Fome, onde lavava pratos e servia no balcão. Sob o conceito de Dias Gomes, estas personagens são “bandidos” por falta de alternativas sociais que não conferiram a eles melhor sorte – a contrário do que há com Lauro, que dá “um golpe do baú”, e por isso, enriquece. Os “bandidos” porém, tinham bom coração e os planos de golpe traçados por eles sempre falhava. Quase sempre pelo sentimentalismo de um deles.


                                    





Lazinha (Betty Faria) Nonô, alegria das gringas (Milton Gonçalves) e Dico (Rui Rezende) numa sequencia de "O Espigão" disponível no Memória Globo.


  Aliás, em se tratando do crítico Artur da Távola, este era um dos mais elogiosos à malandragem da Chave-de-Cadeia: “Betty Faria caminha, segura, no caminho do estrelato. Está empática como nunca, deixando fluir uma muito guardada ternura antiga. Parece liberta da necessidade de afirmação enquanto atriz, das terríveis necessidades de atuar e existir (...) Ela redimensiona sua interpretação ao atuar” - Dizia.

  Lazinha, mesmo bandida, era a personagem que mais atraia o ator Milton Morais, num hipotético relacionamento amoroso entre ele, Milton, e a personagem: “Ela não tem um passado doente. É mais desprendida de ser. É mais aberta para o amor”.




  Sobre ela, sua intérprete dizia: “O personagem é bom. Simpatizo demais com ele. Tenho amor pela Lazinha. Mulher batalhadora, uma coisa que sempre fiz na minha vida. Isso ela tem de mim. Essa liberdade de gostar de alguém e ir quebrar a cara. A falta de medo de ter o que perder. Boto meus sentimentos nela. A afetividade dela está escrita pelo Dias Gomes, mas eu boto a minha (...) Lazinha é uma mulher lindíssima, ela é rica demais!”



    Para a caracterização da personagem, Betty Faria decidiu que as unhas de Lazinha seriam decoradas com os esmaltes cor de prata que ela mesma mandou trazer dos Estados Unidos. As unhas prateadas eram decoradas com decalques que deixavam-nas cada uma de uma cor. Por fim, a música da piveta  não poderia ser outra, senão aquela que mais traduzia a sua personalidade: “Malandragem Dela”. 




1974 foi um ano cheio para Betty Faria. Além d’O Espigão estaria estreando “A Estrela Sobe” (clique aqui para acessar o texto sobre "A Estrela Sobe"). A atriz gravou, ainda para a TV Globo,  “A Feiticeira”, um Caso Especial, estrelado por ela e por Ziembinski, onde coube a Eric Rzepecki envelhecê-la e ao então jovem ator Cecil Thiré. Betty vivia Sara, neste especial escrito por José Vicente e dirigido por Alberto Salvá. A personagem mereceu um tema específico a ela “Tema de Sara”, composto por Edu Lobo. Na vida pessoal, além do casamento com Daniel Filho e da gravidez de seu filho João, ainda teve de lidar com um acidente grave pelo qual passou seu melhor amigo, o dançarino Lennie Dale. Ainda naquele ano, e já recuperado, Lennie e Betty gravariam um especial de dança para a TV. Sua filha mais velha, ainda antes de ser conhecida, era uma criança. Jorge Mautner, delicado, disse ao Pasquim sobre a relação da atriz com a herdeira: “A identificação (...) dela com a filha Ada é intensa e de contínuo amor. Ada faz o que quer. Betty brinca horas e horas com a filha”. Alexandra, nome enorme para criança tão pequena, era chamada Ada. A menina que estreou como atriz justamente neste ano, 1974, fazendo uma participação no filme “O Casal”, junto à mãe.  















Um ano vitorioso para nossa diva: Frames do Caso Especial "A Feiticeira", do documentário "Dzi Croquetes", onde ela fala do seu amigo Lennie Dale e da sua participação no filme "O Casal", ao lado de José Wilker. 


  Na época em que “O Espigão” foi ao ar, o grande nome dos empreendimentos imobiliários no Rio de Janeiro era o do construtor Sérgio Dourado. Havia obras realizadas pela sua construtora espalhadas por toda cidade. Uma parte do público confundiu ficção e realidade e identificou, no empresário, o personagem da novela. Por conta disso, durante o lançamento de um prédio na Zona Sul do Rio, Dourado chegou a ser agredido por um grupo, em protesto. Além disto, à época, também foi noticiado que a especulação imobiliária carioca, tema da novela, era algo muito semelhante ao que viviam os onze moradores do Edifício Aquino, em Ipanema, que estavam sendo pressionados por uma incorporadora, a Gomes de Almeida, que comprou 12 dos 23 apartamentos daquele prédio a fim de construir um moderno empreendimento no local. Segundo os moradores disseram ao jornal O Fluminense (Ed. 21.768/1974) o valor ofertado pela incorporadora era metade do preço de mercado dos apartamentos – que eram amplos e com área verde, na valorizadíssima Rua Prudente de Moraes. 






Anuncio dos empreendimentos imobiliários da construtora de Sérgio Dourado, ele estampando uma matéria da Manchete (ed 1168) de 1974 e o trecho destacado  no texto acima veiculado no jornal O Fluminense.


  Dentre tantos vestígios que hoje quase inexistem, está o tal Beco da Fome, no Rio. O único elemento que remete ao antigo local onde cresceu Lazinha, é o restaurante homônimo, que há na rua Ministro Viveiros de Castro.  A novela também abordava questões ecológicas através do professor interpretado por Ary Fontoura. Por esta iniciativa, Dias Gomes foi elogiado e acabou recebendo uma homenagem pela Sociedade de Ecologia (O Globo, 27/9/74). Impossibilitado de ir recebe-la, incumbiu Milton Moraes em receber a comanda e plantar uma árvore no Horto do Marapendi, atual Barra da Tijuca, região plena em prédios residenciais – Ou por que não dizer, de Espigões.

  Costuma-se dizer que o termo “Espigão” passou a ser usado como sinônimo de “prédio de altura elevada” depois da novela. Porém, a equipe d’O Mofista localizou o uso da expressão antes disto, e de maneira recorrente entre 1970 e 1972, especialmente nos periódicos cariocas. Talvez fora uma gíria regional que acabou por batizar a novela e ganhar o Brasil, a ponto de merecer registro no dicionário como definição de “edifício com muitos andares”, depois da exibição do folhetim.


    O tal do Espigão “Fontana-Sky”, moderno empreendimento, abrigaria uma rampa interna onde o carro seria levado até a porta do hóspede, além de três teatros, cinco cinemas e um circo, além de um computador que exerce a função de gerente do hotel, gerindo-o de forma mecanizada. Um conceito automatizado, moderno, ainda em implantação e estudo hoje em dia, em 2021. Aliás, chega a ser curioso que observar que algumas das excentricidades de Lauro Fontana são, atualmente, corriqueiras no cotidiano, especialmente, num momento de pandemia: Uma delas, por exemplo é a de que os hóspedes do Hotel conseguiriam comprar suas refeições escolhendo-as a partir de uma tela e, depois de selecionada, a refeição seria entregue em seus aposentos – nada muito diferente do que praticamos hoje nos aplicativos de refeições.







    A Escola de Samba fictícia de o Espigão chamava “Aflitos de Botafogo”. E foi composta pela bateria da Unidos de Padre Miguel. 

  Por haver tido problemas de saúde, Dias Gomes teve de afastar-se de O Espigão, cabendo a Lauro Cesar Muniz a condução da novela, ante a impossibilidade do autor titular. Todavia, Lauro César estava num ano atribulado: Às voltas com a escrita de “Corrida do Ouro”, novela cuja autoria era dividida entre ele e Gilberto Braga, além da  pré-produção de “Escalada”, novela que substituiria “Fogo Sobre Terra”, exibida na faixa das 20h, e escrita pelo próprio Lauro. 



O casal Dias Gomes, ele escrevendo os capítulos de sua novela das dez e Janete Clair redigindo os capítulos de sua novela das oito "Fogo Sobre Terra". Foto da revista Manchete de 1974.
 


  O Espigão era a 5ª maior audiência daquele ano, batendo 55% de audiência às 22h – Excelente audiência para o horário. Ao final da novela, não houve um final feliz. Para justifica-lo, Dias Gomes disse algo definitivo: “Eu quis demonstrar que (...) os canalhas sempre morrem de velhice”. 

  Em razão do sucesso, e por haver sido censurada a exibição de “Bandidos da Falange”, “O Espigão” seria reexibida em 1982. A reprise porém, foi barrada justamente pelos incorporadores imobiliários, que viram-se ridicularizados pela novela.



    À jornalista Marisa Raja Gabaglia, Betty Faria disse: “Viver é uma barra, e no auge das barras fiquei só. E, sabe, Marisa, eu só vou poder ser feliz quando estiver bem comigo”. Nesta matéria, a repórter de Manchete salienta que, em Betty, olhos mudam de cor. E que a atriz fala as coisas olhando sempre muito de frente, determinada. Mesmo quando dá um intervalo entre a pergunta e a resposta, diz algo de forma segura, assertiva. Enquanto era entrevistada por Gabaglia, passou por elas um fotografo lambe-lambe que disse: “Que incrível essa moça! Parece a Lazinha”. A moça, de olhos verdes acinzentados mutantes, era a mesma que trocou um Kharmann-Ghia vermelho alaranjado por um Maverick branco. É a mulher, que concluiu a novela notando-se grávida, ainda sem saber se esperava por um menino ou uma menina – Até que transformou-se na mãe de João. É a garota rebelde que concedia entrevista com os botões da calça jeans desabotoados, e que ao ser presenteada com um cordão pela repórter de Manchete, onde havia um Buda como pingente, o pôs no braço, fê-lo de pulseira e disse “Adoro pulseiras”. Lazinha vivia se equilibrando nos saltos ou nos sapatos plataforma, sem saber usá-los. Betty também equilibrou-se sobre os saltos da vida: Piveta, irreverente. Garota que contesta o casamento pequeno-burguês ao afirmar que “(Casar é dizer) Olha, cara, eu vou com tudo contigo. Tô te assumindo enquanto pessoa. Tô contigo e assumo o que vier. Papel não quer dizer nada.”




  A atriz tem o passo meio dançante e grande mobilidade nos braços. É bailarina, afinal. Dança no mundo com uma potência que dá às coisas uma incrível garra de viver – Por ter, em suas palavras “Uma ebulição interior que, de repente solta lavas e sai queimando o mundo”

  Encerro este texto citando o que Jorge Mautner disse n’O Pasquim: “Sabe lá o que é ser ídolo de milhões representando as incríveis paixões humanas deste louco e maravilhoso povo brasileiro? (...) Betty Faria representa de maneira pop, numa maneira pop urbana (...) (É) Criança do mundo pop, uma das futuras habitantes do futuro, onde as pessoas ficam o tempo todo cantando e dançando num eterno carnaval de alegria tropical”. Sabe lá o que é ser Betty Faria? Ela sabe. Pois, encarna em si, aquela que é a maior e menor palavra da língua portuguesa: Betty Faria “É”


(Vítor Antunes)

Fontes de pesquisa:

Sites:

memoria.bn.br
acervo.oglobo.globo.com
memoriaglobo.com

Videos:

Youtube.com
(incluindo os canais: Arquivo1, Acervo Global, Canal Memória e Imprensa Nacional).

Imagens:

Google Imagens

memoria.bn.br

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