“Quando um homem quer alguma coisa, ele dá logo uma porrada. Ou, então, ele não faz nada.”
Essa frase – uma das várias máximas com que Antônio Calmon me presenteou, em um dos deliciosos, caudalosos e-mails que trocamos, lá pelo início do milênio – me veio, muito, à cabeça – enquanto eu via a saga de Tadeu (Ney Santanna), o anti-herói da classe trabalhadora em Gente Fina É Outra Coisa – Uma Comédia Sem Vergonha em Três Atos, título de Calmon produzido por Pedro Carlos Rovai no badalado ano de 1977. A obra é uma comédia clássica na moda das antologias produzidas entre os anos sessenta e setenta, sempre com três, quatro atos com historinhas divertidas costuradas por um personagem ou tema. Neste, vemos o mordomo Tadeu (“o Tadeu é pobre/ pobre do Tadeu/ mas por alguns momentos/ o mundo dos ricos é seu”, é o que canta o Odair José na canção-título), um pé rapado que, como ele mesmo diz, descobre uma certa vocação: a de agradar a grã-finos. Notadamente, grã-finas. Mas tudo começa meio que por acidente.
O primeiro ato se chama Guerra da Lagosta ...ou de como Tadeu provou que empregado também tem sexo... e foi escrito por Graça Motta, minha amiga, irmã do Nelsinho e filha do Nelsão, notadamente um dos advogados mais cultos que o Rio de Janeiro já conheceu, e que relatou o causo de uma família rica, inteira, intoxicada por lagostas, à filha – que, impressionada, produziu um argumento genial em uma época em que ela ainda atuava como Assistente de Direção. A história mostra um empregado visto como assexuado, mas que se revela um quase-psicopata dentro de um contexto absolutamente passivo-agressivo histérico, tendo que cuidar de um cachorrinho de madame que corre o risco de comer lagostas estragadas... E o final, apoplético, revela não só as intenções do funcionário como dos patrões. Mas tudo isso num contexto (que permeia o filme todo) de crítica social sem bandeira ideológica. Calmon sempre teve ASCO de ideologias. O foco é muito mais na ironia de um povo ruim. Todos são. Até mesmo Tadeu.
No elenco, Maria Lucia Dahl, Paulo Villaça, Marieta Severo (brilhante de sexy) e – consta nos créditos – apresentando o cachorrinho Petit Charlot du Cartier.
Claramente a melhor história do filme inteiro, Guerra da Lagosta ajudou Calmon a demonstrar na pornochanchada os traços de autor-mascarado – como ele próprio se definia, uma figura dissociada do Cinema Novo ou de panfletos e discursos, apesar de politizado em si – que se identificaria para sempre com o POP, não só o popularesco. O clipe, desde sua essência em música e em edição até a sua forma vanguardista e menos hermética, mais perene, pulsava no sangue do autor-vampiro.
Vemos, por exemplo, o take congelado do momento em que o cachorrinho, de fato, engasga e morre, depois de toda uma ópera-rock, como Scorsese faria direto em Os Bons Companheiros (título que contou com o voto de Calmon para Melhor Filme no Oscar de 1991. O grande amigo do autor, Bruno Barreto, era membro da Academia de Ciências e Artes Cinemáticas e, ciceroneando o colega em Los Angeles, ao lado da esposa Amy Irving, deixou com que ele cumprisse com a sua quota de votações naquele ano.)
Mas eu digressei, porque temos pela frente o gostoso segundo ato, Chocolate ou Morango? ...ou de como Tadeu ajudou Cecília a se vingar dos homens..., sobre a filha de um ricaço que, contrariado com o affair de Cecília com o malandro Alfredinho, oferece dinheiro para o rapaz sumir da vida da menina – o que ele prontamente aceita, na frente dela e depois de uma negociação meio rodrigueana e hilária, deixando-a absolutamente humilhada e louca para se vingar. Entra em cena o onipresente Tadeu, agora como motorista. E, se já na sequência inicial vemos uma Louise Cardoso deslumbrante em uma espécie de musical clipado sobre o ensaio de ballet da personagem, contrariando não só a estética esperada das chamadas comédias eróticas daquela época como num prenúncio da predileção de Calmon pela linguagem do videoclipe – como veríamos em trabalhos na TV, como Armação Ilimitada –, também a cena em que a protagonista resolve cometer uma despedida de solteira por conta própria, ao som de Cecilia, de Simon & Garfunkel, faz de vez arrebentar com a narrativa padrão do gênero.
Já o terceiro episódio, O Prêmio ...ou de como Tadeu apostou em uma e ganhou três... traz um roteiro, em si, mais pedestre, mas já numa história mais intrincada de telenovela. Calmon, claramente, já enamorava os gêneros em seus filmes, deixando claro que nunca quis ser apenas um diretor, mas um homem de cinema, um contador de estórias. Múltiplo. E, talentosamente, plural, como nunca se viu na indústria do cinema brasileiro. Ninguém soube ser comercial sem renunciar a qualquer conteúdo como ele. Calmon sempre soube driblar tudo. Sempre fui subestimado. Incompreendido. E gostava assim.
As minhas memórias do Calmon são um tanto oníricas, de um homem que sempre se referiu a si próprio no verbo passado. Um visionário com uma lágrima. Um vulto movido por um imenso sentido de desejo.
Lembro de uma vez, época de Um Anjo Caiu do Céu. Eu – que já me correspondia com novelistas como Gloria Perez e Silvio de Abreu e, e-mail de corrente vai, corrente vem, peguei o contato dele e, sem saber como me realizar na Doce Carreira dos Estúdios Globo e precisando de uma chance, uma indicação, perguntei se ele, por acaso, podia me ajudar... A resposta não foi exatamente a que um menino católico, virgem existencial (e corporal, também), de dezenove anos, gostaria de ouvir: “Sebastião, mon cher Sebastião, o que eu posso te dizer? Sugiro que você consuma todas as drogas que puder e se mate enquanto der tempo de manter o seu caixão belo, como o do Kurt Cobain. Porque tem vezes que eu mesmo quero dar um tiro na cabeça.”
Mas o e-mail continuava: “eu, no entanto, Sebastião, estou velho demais para isso. E tento conduzir esta novela da maneira mais frankcapriana possível. Como um jazz. Você gosta de jazz?”
Acho que foi assim que começamos. Conversamos sobre Cole Porter e Woody Allen, duas de minhas grandes paixões, e ele me ensinava não só da TV e do cinema. Me ensinava da vida.
Calmon se dizia um sobrevivente. Fazia questão de frisar isso. A paixão pela cocaína setentista-oitentista foi substituída por uma repulsa de um sexômano aprazerado e “careta, absolutamente careta”, que dormia às 22h. Certa feita ele me escreveu: “são seis horas e eu estou no sítio! As crianças brincam lá fora, é lindo.”
Calmon, no entanto, não ficou meu amigo. Ele se dizia reiteradamente misantropo, a palavra que eu acho que ele mais gostava – porque não só o defendia como, perfeitamente, o descrevia mesmo. Calmon não tinha medo de nada mas tinha medo de gente. Vi brigar e falar mal de muitas pessoas que ele próprio admirava, mas que virava bicho e execrava como um Carcará antes que se afeiçoasse de fato, ou que a relação perdurasse.
“Eu sempre fui um vampiro de muitos amores, e poucos amigos.”
Essa frase não é da obra máxima de Calmon ao apelo ultra popular, a telenovela Vamp (1991), onde, segundo reportagem, à época, o autor dizia se inspirar “nessas pessoas que sugam as energias dos outros, que são os vampiros do nosso tempo”. Essa frase é do próprio criador dela, no Ano da Graça de Dois Mil e Dois. Foi quando o delírio missivista terminou.
Calmon foi se livrando de diretores, atores problemáticos; colaboradores; amigos, amantes; conhecidos; até que houve uma discussão comigo. Naquele dia, ele me expulsou de sua vida, e me escreveu uma despedida: “Vá, meu querido, vá! Que a sua vida está começando – e a minha, terminando.”
Sebastião Maciel é escritor. Trabalhou na Globo, em salas de roteiro da novela "Pé na Jaca" (2006) e da série "Guerra e Paz" (2008). Foi colaborador do autor Carlos Lombardi entre 2008 e 2017. Atuou como produtor executivo e roteirista de cinema.
Fontes de pesquisa:
Imagens:
youtube.com
google.com
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