MOFISTA 3 ANOS: O CINEMA DE ANTÔNIO CALMON (Apresentação)

 

O cinema de Antônio Calmon.


  Antônio Calmon se define como cineasta da seguinte forma: “Fiz o primário com Cacá Diegues, o ginásio com o Gustavo Dahl (1938 - 2011), o clássico com Glauber Rocha (1939 - 1981). Formei – me com Capitão Bandeira e estou tirando o mestrado com Pedro Carlos Rovai (1938 - 2018). É um processo perfeitamente natural. Peguei a linguagem natural do cinema, aprendi tudo o que podia aprender. Agora estou preocupado com o público”.






Os mestres de Calmon: Cacá Diegues, Gustavo Dahl, Glauber Rocha e Pedro Carlos Rovai.

  Muitos conhecem o Calmon da série de sucesso “Armação Ilimitada”. Outros, das novelas que ele escreveu para TV Globo – todas elas exibidas no horário das sete – que marcaram toda uma geração. Obras como “Top Model” (1989), “Vamp” (1991), “Cara e Coroa” (1995), “Corpo Dourado” (1998), “Um Anjo Caiu do Céu” (2001) e “O Beijo do Vampiro” (2002).







  Porém, o trabalho de Calmon antecede a sua produção para a TV. Na telona a consagração veio com “Menino do Rio”, lançado em 1982 e que se tornou um clássico absoluto, por retratar a juventude no começo da década de 80. Neste filme, o autor utilizou elementos que estariam presentes na maioria dos seus trabalhos em televisão: cenários paradisíacos, jovens os problemas recorrentes da sua idade (primeira vez, menstruação, drogas) com muito romance e aventura. Posterior a isso, sua contribuição no gênero ainda inclui filmes como “Garota Dourada”, uma continuação do seu filme anterior, e como roteirista:“Além da Paixão” (1985), Dedé Mamata (1988) e “O Quatrilho” (1995), trabalho este que se tornou a segunda produção brasileira a ser indicada ao Oscar na categoria de melhor Filme Estrangeiro.




Por tudo isso não seria necessário discorrer sobre o autor e diretor. Todavia, é importante apresentar a essa geração o seu lado “underground” e sua passagem pelas comédias eróticas – as famosas pornochanchadas – gênero que abarrotava as salas de cinema. 

  Calmon é cria do Cinema Novo, movimento influenciado pelo neorrealismo italiano e pela Nouvelle Vague Francesa. Eram filmes que tinham como intenção se opor ao tradicional modelo de cinema que era realizado no país, focalizando em mostrar a realidade brasileira e abordando temas como fome, violência e alienação religiosa, além de apostar em cenários como favelas e sertão. Glauber Rocha foi um dos mais importantes nomes deste movimento e Calmon esteve ao seu lado, como assistente do diretor, na realização de clássicos como “Terra em Transe”, de 1967, e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de 1969. 









A presença de Calmon no Cinema Novo: Frames de dois clássicos de Glauber Rocha: "Terra em Transe" (1967) e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro"(1969).


  O primeiro filme dirigido e produzido pelo amazonense foi “Capitão Bandeira contra o doutor Moura Brasil” (1971), fita que teve em seu elenco Hugo Carvana, Dina Sfat, Norma Benguell e Cláudio Marzo. O projeto, filmado em Cinemascope, “não deu um tostão”, segundo afirmou o artista, naquele que foi o primeiro longa-metragem financiado pela Embrafilme. Ao blog “Estranho Encontro”, onde Calmon foi entrevistado com exclusividade pela jornalista Andrea Ormand – que gentilmente cedeu a utilização da mesma pelo Mofista e cuja entrevista está disponível na íntegra aqui (http://estranhoencontro.blogspot.com/2012/12/biografia-entrevista-antonio-calmon.html) – Antônio falou sobre sua carreira no cinema: “Reunimos um puta elenco e eu, em uma semana, completamente alucinado, escrevi o roteiro. Como todo primeiro filme, era uma mistura de tudo que eu gostava. Na época eu achava que seria um estouro comercial. O dinheiro mal dava. Filmamos em três semanas: uma em São Paulo, uma em Arembepe, na Bahia. O filme levou cinco anos para se pagar”.



       Mesmo com essa conturbada estreia, as criticas à película foram favoráveis, o que acabou por carimbar o seu ingresso em outras produções cinematográficas. Em 1975 filmou “Paranoia”. Sobre este filme, comentou à Andrea: “Paranoia era um projeto de ambiciosíssimos produtores de Ribeirão Preto. Foi escrito a partir de uma crônica do Carlos Heitor Cony, baseada no tal primeiro assalto em uma residência burguesa que se teve notícia, em São Paulo. Eu estava cinco anos sem filmar”. Ao Jornal do Brasil (16/9/76), sobre “Paranoia”, Calmon disse: “(Trata-se de) Uma obra de encomenda, parte de uma formula inúmeras vezes industrializada, com o sucesso em produções estrangeiras, e não vai além do cultivo, disciplinado, cuidadoso – embora superficial – do esquema”.



  “Paranoia” foi considerado pela critica da época o primeiro “thriller” brasileiro, e contou em seu elenco com Norma Benguel – que retornava ao país após cinco anos de exílio na França devido ao regime militar. As criticas fora, mais uma vez, bem favoráveis ao projeto apresentado. O articulista Ely Azevedo, em sua coluna no JB de 16/9/76, disse ser este um filme onde “Calmon explora o aprisionamento da trama no cenário base, procurando tirar o melhor partido possível da crescente explosão de ânimos que se percebe desde o início na inevitável convivência dos contrários (moradores e invasores).” Na mesma critica destacou a direção do filme que “ele (Calmon) demonstra certa habilidade na alimentação do suspense e não desperdiça os melhores momentos de violência”.



  No ano seguinte acontece o que viria ser o casamento mais feliz dentro da carreira cinematográfica do diretor, a parceira com os roteiristas Leopoldo Serran, Armando Costa e o produtor Pedro Carlos Rovai, parceria esta que lançaria em sequencia três filmes campeões de bilheteria no final da década de 70: “Gente Fina é Outra Coisa” (1977), “O Bom Marido” (1978) e “Nos Embalos de Ipanema” (1979). Todos os três abordando um tema comum: uma visão crítica da classe média urbana onde, segundo o Jornal do Brasil de 22/9/77, “Calmon mostra com simpatia a decadência da burguesia, a falência das elites, e a sua falta de valores”.





        Tanto “Gente Fina é Outra Coisa”, “Nos Embalos de Ipanema” e “Eu Matei Lúcio Flávio” o diretor apostou em cenas de erotismo afim de desenvolver a trama principal. O diretor sabia que os críticos iriam questionar, uma vez que ele iniciou na carreira trabalhando com grandes nomes do cinema brasileiro, tendo estreado em um filme esteticamente ousado e autoral, e que estava se “submetendo” a  filmar pornochanchadas, gênero que, embora lotasse as salas de cinema, era pouco valorizado pela intelligentsia, que via nas comédias eróticas uma forma fácil de se ganhar dinheiro, através de  histórias sem nenhum grande propósito além da exploração da nudez e das cenas de sexo. 




    Calmon se defendeu em matérias da época, no Jornal do Brasil em 25/9/77 ele comentou: “É uma inovação da comédia sofisticada com toque de erotismo. Mas há diferenças habituais. Os elementos são apresentados com uma visão cínica, a sexualidade não é moralista, mas sadia, liberada, fruto da nova mentalidade urbana de se encarar a questão”. Falando sobre o “Gente Fina” ele diz: “É um filme sem heróis e sem vilões, já que ninguém pode concentrar todas as coisas boas ou ruins, o que é muito simplista. Aceito a divulgação do filme como comédia erótica, mas sobretudo pela sua possibilidade de abertura a um produto de qualidade”. No elenco repleto de estrelas destaque para o protagonista Ney Sant’Anna e para o elenco feminino composto por Marieta Severo, Maria Lucia Dahl, Selma Egrei, Louise Cardoso, Kátia D’Ângelo e Marcia Rodrigues.



    Com “Nos Embalos de Ipanema” Antônio e Rovai encontram o caminho de fisgar o publico misturando humor ácido, criticas sociais e leves pitadas de nudez, com todo bom gosto apresentado nas obras anteriores: “Hoje estou preocupado com cinema de consumo” – disse ele à Folha de São Paulo em 14/5/79. E concluiu: “Me convenci definitivamente do obvio: o consumo é tão inteligente quanto o seu contrário. Acho inclusive um desafio muito maior fazer esse tipo de cinema”. A década chegava ao fim, bem como a parceria entre Calmon e Rovai.




  Foi Jece Valadão quem convidou o diretor e roteirista a assumir a cadeira para conduzir talvez a sua mais ambiciosa produção no gênero e considerado por críticos a sua obra – prima: “Eu Matei Lúcio Flávio”, baseado nas memórias de Mariel Mariscott. Na entrevista ao blog Estranho Encontro, ele relatou como surgiu esta oportunidade: “O Jece Valadão, dono da Magnus Filmes, convidou o Leopoldo (Serran). Não sei como, nem por quê. Leopoldo me telefonou, do nada. – Olha, estou escrevendo um roteiro para o Jece Valadão, sobre o Mariel Mariscott. -  Mariel era “brother” dele (Valadão). Fomos à cadeia, conversei com o Mariscott um três vezes. Depois que o filme ficou pronto, contaram para ele, que ficou puto. Meio que me mandou uma ameaça”. Sobre a chateação de Mariscott, a edição do JB de 9/9/1979 publicou uma entrevista com Antônio, que explicou toda essa situação: “Tive conhecimento desses boatos, mas achei estranho porque o filme não foi só feito com o consentimento do próprio Mariel. Mariel é sócio na produção. É preciso esclarecer que não fiz um filme jornalístico, pretendendo absolver ou inculpar ninguém de nada. “Eu Matei Lúcio Flávio” é um filme de ficção inspirado na vida dele (Mariel) e baseado em fatos da crônica policial, como aliás consta nos letreiros do filme. O próprio Lúcio Flávio que aparece no filme não tem nada a ver com a pessoa real”.







     Para contextualizar: Lúcio Flávio foi um assaltante de bancos que juntamente com seu irmão Nijini Renato e seu cunhado Fernando C.O e outros dois comparsas cometeram vários crimes no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Brasília. Flávio também se tornou a principal testemunha nas investigações sobre a atuação do Esquadrão da Morte e ajudou a desmantelar a organização que tinha como um dos integrantes o detetive Mariel Mariscot de Matos. Lúcio, que foi assassinado por um companheiro de cela em janeiro de 1975, teve sua vida contada no livro “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia” escrito por José Louzeiro e que se transformou no filme homônimo lançado em 1977, dirigido por Hector Babenco e estrelado por Reginaldo Faria. 





    Quando o filme de Calmon foi lançado, muitos acreditavam que seria uma resposta à obra de Babenco, o que ele tratou de desmistificar: “O (Hector) Babenco transformou o Lúcio Flávio num herói popular. Uma metáfora do terrorista que assalta banco. Acontece que o Lucio Flávio não era nada disso. (...) (Eu Matei Lucio Flavio) pertence a uma linha de produto artístico que leva os instintos mais sombrios e destrutivos, mas reais, ao seu extremo limite. ‘Eu Matei Lúcio Flávio’ deu muito dinheiro” – Afirmou ao Jornal do Brasil.



  E foi assim que Calmon firmou-se na cena cinematográfica brasileira. É importante destacar esse período em que o artista surge, não como o competente autor de novelas, mas como cineasta. Trabalhando num formato onde conseguiu destaque e sob vários estilos dentro da cinematografia brasileira, passando pelo movimento do Cinema Novo, pelo underground, e indo do thriller às comédias eróticas, e mesmo aderindo ao que se entendia como mainstream, diferiu-se dos demais por implementar em suas obras uma critica sagaz à burguesia. 


  A nova geração merece conhecer sua filmografia, embora alguns trabalhos não estejam mais disponíveis, como o longa “Revolver de Brinquedo”, cuja única cópia foi perdida, os demais produtos estão disponíveis no YouTube, e são recorrentemente apresentados no Canal Brasil, que inclusive incumbiu-se de restaurar alguns desses filmes, como “O Bom Marido” e “Nos Embalos de Ipanema”. 

  Falar de Antônio Calmon é resgatar um período importante do cinema brasileiro. 



Agradecimento à Andrea Ormand.
Revisão textual: Vítor Antunes.


Fontes de pesquisas:

Sites:
memoria.bn.br
veja.abril.com.br
istoe.com.br
acervo.folha.com.br
www.sincrocine.com.br
estranhoencontro.blogspot.com

Imagens:
youtube.com
memoria.bn.br
veja.abril.com.br
istoe.com.br
acervo.folha.com.br
www.sincrocine.com.br





Comentários