Betty Faria 80 Anos em 8 atos
ÚLTIMO ATO: NO CORAÇÃO DO AGRESTE. NO CORAÇÃO DO BRASIL.
1989.
Há quem diga que este ano não acabou. No carnaval, especialmente, ainda hoje há quem discuta o título da Imperatriz Leopoldinense em face dos Ratos e Urubus de Joãosinho Trinta. Para 38 familias, vítimas do naufrágio do Bateau Mouche – dentre elas a da família da atriz Yara Amaral – foi como se 89 não houvesse sequer chegado. Dos 11 acusados, dois foram condenados à prisão em regime semiaberto, mas fugiram para a Europa e como o crime prescreveu não há possibilidade de cumprimento da pena.
De Bateau Mouche à queda do Muro de Berlim, passando pela morte de Raul Seixas e o Botafogo campeão carioca, 1989 começou bem diferente e prometia grandes surpresas. |
Ainda hoje a torcida do Botafogo comemora o título do Campeonato Carioca daquele ano, após 21 anos de jejum. 1989 marca o nascimento da mais jovem capital do Brasil, a cidade de Palmas, bem como a queda do Muro de Berlim e o falecimento de Raul Seixas. Junto ao ano em que se celebrava o os 100 anos da Proclamação da República, a própria instituição republicana no Brasil estava em festa: Era a primeira eleição direta que acontecia após 21 anos de Ditadura Militar. Collor o primeiro presidente civil foi eleito, em meio a uma polêmica e polarizada eleição.
Direita e esquerda no poder, Lula "O Salvador da Pátria" e Collor o revolucionário que agradou gregos e troianos. 2021 em 1989. |
Naquele sufrágio universal, muitos astros se posicionaram em favor de seus candidatos, afinal, muitos deles haviam passado pelas agruras da ditadura e da Censura, então os artistas viam-se não apenas como famosos, mas como atores sociais. Dentre eles, o elenco de uma das mais bem sucedidas novelas de 1989: Tieta. Naquela ocasião, boa parte do elenco da novela fazia coro, pedindo pela eleição de Lula. No clássico vídeo de apoio à candidatura do presidente, aquele em que o jingle “Lula Lá” ficou eternizado, é possível encontrar vários artistas da novela das Oito, como José Mayer, Lídia Brondi, Reginaldo Faria, Armando Bógus e Joana Fomm. A direção do clipe da campanha foi feita por Paulo José. Todavia, a participação mais ativa foi a de Paulo Betti, que foi o mestre de cerimônias do então candidato.
Lula lá. Boa parte do elenco da novela das oito apoiava o candidato do PT. |
Em 1987, segundo noticiado em Veja, de 16/08/89, a atriz havia comprado os direitos para uma possível adaptação do livro “Tieta do Agreste”, inicialmente, a fim de montar uma minissérie e que seria produzida pela própria atriz: “Seria uma produção independente que eu pretendia vender para a Globo, mas como eu e meu sócio sentimos que não teríamos estrutura para bancar a produção, resolvemos envolver a emissora no negócio”. Segundo O Globo, porém, as negociações de Betty pela compra dos direitos da novela começaram no ano anterior, 88, logo após o festival de Cannes.
A revista do grupo Bloch, inclusive, apontou que a minissérie “Tieta” poderia ser produzida por Daniel Filho (Manchete Ed. 1917). Nas bases do contrato dos direitos de “Tieta do Agreste” constava que, em caso de montagem, a própria Betty Faria o papel protagonista. Curiosamente, a ligação de Betty com Tieta não começa aí, mas em 1977. Naquela ocasião, a atriz procurou por Jorge Amado a fim de saber do procedimento da compra dos direitos de outra obra do autor: “Tereza Batista Cansada de Guerra”. Ao vê-la, a esposa de Amado comentou que “Em alguns anos a Tieta (Personagem que que Jorge estava escrevendo) só poderia ser protagonizada por você”. Conforme o tempo foi passando, a ideia de Betty fazer “Tereza” arrefeceu. E por não ter a idade necessária para a realização da personagem, a sugestão de Zélia Gattai acabou sendo igualmente esquecida, só retornando dali a dez anos. Mesmo com os direitos de adaptação comprados, “Tieta” estava em modo de espera. Afinal, além dos filmes e séries que gravou entre 1986 e 1988, em 1989 a atriz estava em cartaz em “O Salvador da Pátria”.
Já na reta final das gravações da obra de Lauro César Muniz – a um mês e meio do fim das gravações – a Globo iniciou os movimentos para gravar uma novela baseada na obra de Amado. A atriz teve pouco tempo para libertar-se de sua antiga personagem, a militante Marina Sintra, de “O Salvador da Pátria”.
A escolha de Tieta como substituta da novela de Sassá Mutema perpassa, inclusive, por uma questão estratégica política. Como aquele seria um ano de eleições e já havia a discussão de que “Salvador” podia estar retratando um personagem real – Lula, na ocasião – A escolha de uma novela que situada num lugarejo do interior mostrava-se como mais acertada, justamente por revelar-se como uma obra atemporal. Um refresco, em meio ao tempestuoso cenário político no Brasil.
Porém, anteriormente, a novela prevista para entrar no lugar de “O Salvador da Pátria” era outra: “Barriga de Aluguel”. É o que conta o site Teledramaturgia, citando o livro de Flávio Ricco e José Armando Vannucci “Biografia da Televisão Brasileira” que “Parte do elenco que estava separado para Barriga de Aluguel foi passada para Tieta”. Barriga de Aluguel passou por uma enorme jornada até ser montada, como novela das 18h, em 1990.
A princípio foi levantada a possibilidade de que Marina Sintra, personagem de Betty Faria em “O Salvador da Pátria”, morresse para que a atriz pudesse estrear em “Tieta” – então chamada “Tieta do Agreste” – com alguma folga, mas isso não aconteceu. Acabaram por adiar a chegada da protagonista em 17 capítulos. E as férias que estavam anteriormente previstas para durar por muito tempo acabaram durante apenas quatro dias.
Betty diz haver ficado apavorada “Por que não teria muito tempo para trabalhar a personagem (...) A primeira coisa que pensei foi no desgaste físico de fazer uma novela depois da outra. Queria ficar em casa bem mãezona, levando uma vida bem tranquila” (O Globo, 3/9/89). Aos 48 anos, com um filho de 14 anos e uma filha de 20, num ritmo intenso de trabalhos, a intenção da atriz era descansar, mas renunciou às férias: “Depois de muito pensar achei melhor não abdicar mais de nenhum trabalho. Por que na minha carreira já me (privei) de muitos papeis”. Ainda sobre esta temática, sobre a maturidade, Faria afirmou “Ser uma coisa nova na TV as atrizes com mais de 40 anos estarem com grandes papéis (...) Eu tenho dado de presente vários (papeis) para outras atrizes e agora eu não quero mais. Resolvi que vou fazer o que é pra mim.”.
A decisão em fazer Tieta vai muito além da questão contratual, que deve ser levada em conta, e se sobrepõe ao fato de ser a protagonista absoluta da novela. Esta escolha dialoga com a problemática relação existente entre a televisão e a maturidade feminina. Naquela altura, 1989/1990, já eram poucas as ocasiões em que uma atriz com mais de 45 anos protagonizaria uma novela. Tomando por base a década de 1990, haja vista que a novela terminou em março de 1990, localizamos que em apenas 4 ocasiões o papel principal de uma novela das oito coube a uma atriz com mais de 45 anos. E, destas 4, somente 3 atrizes desempenharam este papel – A saber Regina Duarte (Rainha da Sucata e Por Amor), Susana Vieira (A Próxima Vítima) e Renata Sorrah (Pedra sobre Pedra). Embora possa ser essa uma contagem falha, o leitor há de concordar que não é tarefa difícil localizar um protagonista masculino com a idade acima estabelecida.
Voltando à novela, sua intérprete comentou à época: “(Tieta é) Muito pra cima, alegre, e que isso está me ajudando muito. Estou sentindo um prazer imenso em fazer alguém que é o oposto de contida Marina Sintra (...). Tieta é a própria extroversão.” (O Globo, Set/89). O exuberante visual de Tieta – composto pelo figurino de Helena Gastal e Lessa de Lacerda – fez tanto sucesso que foi lançada uma linha de roupas inspiradas nos trajes da personagem, a grife Tieta by Betty Faria, com biquíni, óleo bronzeador e batom em tons de dourado e laranja. Outro sucesso foi o corte de cabelo elaborado por Silvinho. Resolvido o problema da entrada da protagonista na obra, outra demanda precisava ser administrada: A do atraso na produção.
A novela começou a ser gravada em junho de 1989, e estrearia em agosto daquele ano. As gravações atrasaram e a cidade cenográfica foi a última a ficar pronta. Até onde foi possível apurar, tratavam-se de duas cidades cenográficas: Uma em Guaratiba e outra em Jacarepaguá – Local que hoje abriga os Estúdios Globo. Local que, embora só tenha sido inaugurado e concluído oficialmente em 1995, já sediava algumas gravações, como as do cartaz das Oito tratado neste texto, e a obra exibida às sete, “Que Rei Sou Eu?”. A novela foi implantada por Paulo Ubiratan, que dirigiu os seus 15 primeiros capítulos, até entrega-la às mãos de Reynaldo Boury e Ricardo Waddington. Em 1989 estimava-se que cada capitulo de Tieta custava à Globo cerca de US$35.000,00. A cidade cenográfica, grande, constava de 46 casas, duas igrejas, seis ruas, oito ruínas, duas praças e um circo abandonado. E foi construída a toque de caixa, como cita o site Teledramaturgia “Quando começamos a gravar no Rio de Janeiro, só havia o bar e o correio. O restante foi surgindo com o tempo, inclusive a praça redonda e o coreto, fundamentais para muitas ações.”. Aliás, importante dizer que a Igreja de Santana, onde Padre Mariano congregava, foi reaproveitada no ano seguinte na novela Mico Preto.
Nos primeiros capítulos, Tieta foi vivida por Claudia Ohana, que por muito muito não viveu a personagem num outro momento. No início dos anos 80 uma adaptação de “Tieta do Agreste” para o cinema estava com negociações avançadas. No filme, que seria dirigido por Lina Wertmüller, a protagonista seria vivida por Sophia Loren. Os tratos à montagem prosseguiram até 1984, quando o projeto foi abandonado.
Quanto à abertura da novela, Hans Donner abriria seleção para escolher a modelo que comporia a vinheta. Todavia, Boni foi taxativo: “Hans, você já tem a mulher em casa”. E assim foi feito. A esposa de Donner, a então modelo Isadora Ribeiro, fez a moderna e sensual abertura – Chamada de “Vinheta erótica” por Manchete (Ed 1951). Pouco tempo depois deste trabalho, Isadora iniciaria uma bem sucedida carreira como atriz. Em 1990 fez sua primeira novela “Brasileiras e Brasileiros”, no SBT. Há fontes que apontam que a música tema da novela, que também tem o nome de sua heroína, veio para substituir a primeira canção inicialmente cogitada, “Vem Morena”, cantada por Nana Caymmi. Rejeitada como trilha de aberura, a canção acabou tornando-se tema de Carol (Luiza Tomé), sob um novo arranjo.
Com o fim da Censura, que deu-se em 1988, Tieta pôs-se a discutir vários temas polêmicos – alguns deles seriam polêmicos ainda hoje – como o suposto incesto praticado entre a heroína e seu sobrinho, além do rufianismo que incidia sobre a personagem de Lídia Brondi. Rufianismo praticado, também, por Zuleica Cinderela sobre as meninas da Casa da Luz Vermelha. A exploração sexual de menores também foi explorada através das Rolinhas do Coronel da Tapitanga, bem como também eram discutidos o celibato, através dos personagens Ricardo e Cosme, e a virgindade em mulheres maduras, por meio de Carmosina. No terreno fálico, a “Estrovenga” de Osnar e o seu apetite sexual eram recorrentemente citados, bem como a discussão sobre a possibilidade de Perpétua haver guardado o pênis do marido dentro de uma enorme caixa branca.
Aliás, a caixa de Perpétua ainda hoje é cercada de muita polêmica. Embora houvesse em Santana do Agreste a lenda de que a “patente” do Major estava dentro da caixa, fato comentando por quase todos os personagens da novela em seus primeiros capítulos, a caixa nunca teve o seu conteúdo revelado pro público. Ou seja, sob algum aspecto, o material é, ainda hoje, misterioso. Com este fato, inclusive, o autor brinca em “Fina Estampa” (2011), quando não revela quem é o namorado misterioso de Crô.
Em se tratando do Major Cupertino, marido de Perpétua, ele seria vivido por um figurante, que faltou no dia marcado para a sua sessão de fotos. Por fim, o pai de Peto e Ricardo acabou vivido por Ângelo Augusto Serralha, um dos contrarregras da casa. Além disto, mais ao fim, Serralha estreou com ator, tendo de contracenar com Joana Fomm. Além do figurante que faltou e foi substituído, um outro personagem também foi substituído em sua escalação. O Pastor Hilário, que acabou sendo vivido por Jorge Dória, quase foi interpretado por Walter D’Ávila – Este, uma presença bissexta em novelas. Antes mesmo dos atores, um autor também trocou de produção. Ana Maria Moretzsohn fazia parte da equipe de “O Salvador da Pátria” e preteriu-a em favor de “Tieta”.
A novela contou com gravações no Mangue Seco - Povoado que fica na baía de Estância, município de Jandaira, entre à divisa dos Estados de Sergipe e Bahia. Distante em 114 km da capital sergipana. As cenas iniciais de Ascânio e Helena, foram feitas numa estação de trem em Itacuruçá, distrito de Mangaratiba (RJ). Depois de gravadas as cenas iniciais no Nordeste, as passagens que simulavam as praias nordestinas passaram a ser gravadas na Barra da Tijuca ou na Restinga da Marambaia. As cenas nas dunas, como a clássica cena do retorno de Tonha, ao som de Simone, foram gravadas em Cabo Frio, interior do Rio.
Alguns contratempos também cercaram a novela. Armando Bógus iniciou a novela com problemas de tendinite. Depois, intenso, ao gravar a cena em que Aída recebe a carta em que há a revelação de que Carol (Luiza Tomé) é amante de seu personagem, Modesto, Bógus atirou-se no chão e fraturou uma costela. Além dele, Maria Helena Dias, a intérprete de Zuleica Cinderela, fraturou o fêmur durante as gravações e precisou ficar afastada.
Sabemos que regressar é reunir dois lados. O anzol do tempo não a feriu. Que é a vida de uma atriz senão um tecido de fios enredados? Junto à Tieta, a alma de Betty renasceu. Não mais noiva, mas casada com o “Amanhã”, que hoje é presente. Fez de seu talento, saudade. Saudade de Silvinho, que morreu ainda durante a novela, vítima do HIV – Que também levaria Lennie Dale dali a quatro anos. Lennie, que faleceu em seu país natal, os Estados Unidos, disse querer voltar ao Brasil para apenas para rever Betty Faria. Aqui conheceu sua melhor amiga e esse sentimento só exprimível em português: Saudade. E depois de tanta demanda, de uma tamanha odisseia, podemos jurar à distinta plateia que esta é a verdade mais pura: De uma saudade, a felicidade de voltar aqui. Rebelde por natureza, sim. Mas, sobretudo, artista. Com flores de algodão. No coração do agreste. No seio de Tangará. No júri de Greenville. Uma estrela sobe: Betty Faria.
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